Feira das cabeças.
De latas de querosene mãos negras de um soldado
retiram cabeças humanas. O espetáculo é de arrepiar. Mas a multidão, inquieta,
sôfrega, num delírio paredes-meias com a inconsciência, procura apenas alimento
à curiosidade. O indivíduo se anula. Um desejo único, um único pensamento,
impulsa o bando autômato. Não há lugar para a reflexão. Naquele meio deve de
haver almas sensíveis, espíritos profundamente religiosos, que a ânsia de
contemplar a cena macabra leva, entretanto, a esquecer que essas cabeças de
gente repousam, deformadas e fétidas, nos degraus da calçada de uma igreja.
Cinco e meia da tarde. Baixa um crepúsculo temporão sobre Santana do Ipanema, e
a lua crescente, acompanhada da primeira estrela, surge, como espectador
das torrinhas, para testemunhar o episódio: a ruidosa agitação de massas que se
comprimem, se espremem, quase se trituram, ofegando, suando, praguejando, para
obter localidade cômica, próximo do palco.
Desenrola-se o drama. O trágico se confunde com o grotesco. Quase nos espanta
que não haja palmas. Em todo caso, a satisfação da assistência traduz-se por
alguns risos mal abafados e comentários algo picantes, em face do grotesco. O
trágico, porém não arranca lágrimas. Os lenços são levados ao nariz: nenhum aos
olhos. A multidão agita-se, freme, sofre, goza, delira. E as cabeças vão
saindo, fétidas, deformadas, das latas de querosene - as urnas
funerárias -, onde o álcool e o sal as conservam, e conservam mal. Saem
suspensas pelos cabelos, que, de enormes, nem sempre permitem, ao primeiro
relance, distinguir bem os sexos. Lampião, Maria Bonita, Enedina, Luiz Pedro,
Quinta-Feira, Cajarana, Diferente, Caixa-de-Fósforo, Elétrico, Mergulhão...
- As cabeças!
- Quero ver as cabeças!
Há uma desnorteante espontaneidade nessas manifestações.
- As cabeças. Não falam de outra coisa. Nada mais interessa.
As cabeças.
- Quem é Lampião?
Virgulino ocupa um degrau, ao lado de Maria Bonita. Sempre juntos, os dois.
- Aquela é que é Maria Bonita? Não vejo beleza...
O soldado exibe as cabeças, todas, apresenta-as ao público
insaciável, por vezes uma em cada mão. Incrível expressão de indiferença nessa
fisionomia parada. Os heróis de tantas sinistras façanhas agora desempenham,
sem protesto, o papel de S. João Batista...
Sujeitos mais afastados reclamam:
- Suspende mais! Não estou vendo, não!
- Tire esse chapéu, meu senhor! - grita irritada uma mulher.
O homem atende.
- Agora, sim.
A pálpebra direita de Lampião é levantada, e o olho cego
aparece, como elemento de prova. Velhos conhecidos do cangaceiro fitam-lhe na
cabeça olhos arregalados, num esforço de comprovação de quem quer ver para
crer.
- É ele mesmo. Só acredito porque estou vendo.
Houve-se de vez em quando:
- Mataram Lampião... Parece mentira!
Virgulino Ferreira, o rei do cangaço, o "interventor do
sertão", o chefe supremo dos fora-da-lei, o cabra invencível, de corpo
fechado, conhecedor de orações fortes, vitorioso em tantos reencontros, - Virgulino
Ferreira, o Capitão Lampião, não pode morrer.
E irrompe de várias bocas:
- Parece Mentira!
No entanto é Lampião que se acha ali, ao lado de Maria
Bonita, junto de companheiros seus, unidos todos, numa solidariedade que
ultrapassou as fronteiras da vida. É Lampião, microcéfalo, barba rala, e
semblante quase doce, que parece haver se transformado para uma reconciliação
póstuma com as populações que vivo flagelara.
Fragmentos de ramos, caídos pelas estradas, durante a viagem, a caminhão, entre
Piranhas e Santana do Ipanema, enfeitam melancolicamente os cabelos de alguns
desses atores mudos. Modestas coroas mortuárias oferecidas pela natureza
àqueles cuja existência decorreu quase toda em contato com os
vegetais - escondendo-se nas moitas, varando caatingas, repousando à sombra dos
juazeiros, matando a sede nos frutos rubros dos mandacarus.
Fotógrafos - profissionais e amadores - batem chapas, apressados, do povo, e
dos pedaços humanos expostos na feira horrenda. Feira que , por sinal, começou
ao terminar a outra, onde havia a carne-de-sol, o requeijão de três mil-reis o
quilo, com o leite revendo, a boa manteiga de quatro mil reis, as pinhas doces,
abrindo-se de maduras, a dois mil-reis o cento, e as alpercatas sertanejas, de
vários tipos e vários preços.
Ao olho frio das codaques interessa menos a multidão viva do que os restos
mortais em exposição. E,
entre estes, os do casal Lampião e Maria Bonita são os mais insistentemente
forçados. Sobretudo o primeiro.
O espetáculo é inédito: cumpre eternizá-lo, em flagrantes expressivos. Um dos
repórteres posa espetacularmente para o retratista, segurando pelas melenas
desgrenhadas os restos de Lampião. Original. Um furo para "A Noite
Ilustrada".
Lembro-me então do comentário que ouço desde as primeiras
horas deste sábado festivo: - "Agora todo o mundo quer ver Lampião, quer
tirar retrato dele, quer pegar na cabeça... Agora..." Há, com efeito,
indivíduos que desejam tocar, que quase cheiram a cabeça, como ansiosos de
confirmação, por outros sentidos, da realidade oferecida pela vista.
Desce a noite, imperceptível. A afluência é cada vez maior. Pessoas
do interior do município e de vários municípios próximos, de Alagoas e
Pernambuco, esperavam desde sexta-feira esses momentos de vibração. Os dois
hotéis da cidade, literalmente entupidos Cheias as residências
particulares - do juiz de direito, do prefeito, do promotor, de amigos
dessas autoridades. Para muitos, o meio da rua.
Entre a massa rumorosa e densa não consigo descobrir uma só fisionomia que se
contraia de horror, boca donde saía uma expressão, ainda que vaga, de espanto.
Nada. Mocinhas franzinas, romanescas, acostumadas talvez a ensopar lenços com
as desgraças dos romances cor-de-rosas, assistem à cena com uma calma de
cirurgião calejado no ofício. Crianças erguidas nos braços maternos espicham o
pescoço buscando romper a onda de cabeças vivas e deliciar os olhos
castos na contemplação das cabeças mortas. E as mães apontam:
- É ali, meu filho. Está vendo?
Alguns trocam impressões;
- Eu pensava que ficasse nervoso. Mas é tolice. Não tem que
ver uma porção de máscaras.
- É isso mesmo.
Os últimos foguetes estrugem nos ares. Há discursos. Falam
militares, inclusive o chefe da tropa vitoriosa em Angico. Evoca-se
a dura vida das caatingas, em rápidas e rudes pinceladas. O deserto. As noites
ermas, escuras, que os soldados às vezes iluminam e povoam com as histórias de
amor por eles sonhadas - apenas sonhadas... Os passos cautelosos, mal seguros
sobre os garranchos, para evitar denunciadores estalidos, quando há perigo
iminente. Marchas batidas sob o sol de estio, em meio da caatinga enfezada e
resseca, e da outra vegetação, mais escassa, que não raro brota da pedra e
forma ilhotas verdes no pardo reinante: o mandacaru, a coroa-de-frade, a
macambira, a palma, o rabo-de-bugio, facheiro, com o seu estranho feitio de
candelabro. A contínua expectativa de ataque tirando o sono, aguçando os
sentidos.
O sino toca a ave-maria. Dilui-se a voz no sussurro espesso da multidão
curiosa, nos acentos fortes do orador, que, terminando, refere a vitória contra
Lampião, irrecusavelmente comprovada pelas cabeças ali expostas. Os braços da
cruz da igrejinha recortam-se, negros, na claridade tíbia do luar; e na aragem
que difunde as últimas vibrações morrediças do sino vem um cheiro mais ativo da
decomposição dos restos humanos. Todos vivem agora, como desde o começo do dia,
para o prazer do espetáculo. As cabeças!
A noite fecha-se. Em horas assim, seriam menos ferozes os pensamentos de
Lampião. O seu olhar se voltaria enternecido para Maria Bonita.
Que será feito dos corpos dissociados dessas cabeças? O rosto de Maria Bonita,
esbranquiçado a trechos por lhe haver caído a epiderme, está sinistro. Onde
andará o corpo da amada de Lampião? A cara arrepiadora, que mal entrevejo à luz
pobre do crescente, não me responde nada.
E Lampião? Sereno, grave, trágico. O olho cego, velado pela pálpebra, fita-me.
Santana do Ipanema, Alagoas, 1938.
Texto do livro esgotado “O chapéu de meu pai”, editora Brasília, 1974.
Autor: Aurélio Buarque de Holanda.